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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Henri Wallon e o conceito de sincretismo


Entenda de que maneira o pesquisador francês mostrou que as crianças pensam, mesclando realidade e imaginação

As crianças observam
a realidade
à sua volta
por um prisma diferente do utilizado
pelos adultos
e permeiam seus relatos   de dados
reais, mitos
e fantasias. Foto: Tom Hollyman/Photo Researchers, Inc. Pesquisa iconográfica Josiane Laurentino
JEITO PRÓPRIO DE PENSAR As crianças observam a realidade à sua volta por um prisma diferente do utilizado pelos adultos e permeiam seus relatos de dados reais, mitos e fantasias
Ao conversar com crianças pequenas, é comum ouvir frases curiosas. Se você pergunta, por exemplo, por que a Lua aparece à noite, uma responde que "ela queria sempre estar de dia, mas brigou com o Sol", outra diz que "as estrelas resolveram quem ficava de dia e quem ficava de noite" e assim por diante. Esse jeito de pensar, que por vezes parece não ter lógica para os mais crescidos, é chamado de pensamento sincrético e é natural da infância. Sincretizar significa reunir, e é isso que os pequenos fazem - ao tentar explicar as coisas, eles misturam realidade e fantasia sem distinção. Embaralham todas as ideias em um mesmo plano e veem o mundo de forma global e generalizada.

O termo vem da filosofia e aparece em diversas teorias do desenvolvimento. Foi na obra do médico, psicólogo, filósofo e educador francês Henri Wallon (1879-1962), no entanto, que ganhou uma nova perspectiva: o pesquisador explicou que o desenvolvimento infantil vai do sincretismo à categorização (leia um resumo do conceito na última página). "No início, a percepção do bebê é nebulosa. Aos poucos, à medida que tem contato com novas experiências e informações, ela vai se refinando. Com o desenvolvimento, chega-se ao pensamento categorial, no qual a criança já é capaz de definir e explicar elementos", diz Laurinda Ramalho de Almeida, vice-coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

A maneira como a criança pensa é influenciada por dois fatores: sua capacidade cognitiva e as referências que recebe do meio. Os pequenos têm acesso a conhecimentos vindos de diferentes fontes - experiências pessoais, informações trazidas de casa ou da escola e tradições culturais (mitos, fábulas e histórias). No entanto, não conseguem organizá-los.

Wallon explica que o pensamento infantil tem características particulares, diferentes das do adulto. A principal delas é o pensamento por meio de pares complementares. A criança não consegue explicar um objeto sem relacioná-lo a outro. Quando questionada, combina diferentes referências e apresenta uma resposta. "Ela tenta conciliar tudo aquilo que recebe das fontes de conhecimento usando para isso uma lógica própria", diz Laurinda. Nada impede, no entanto, que os mesmos elementos sejam recombinados em outro momento e adquiram outro sentido. Os pequenos podem, por exemplo, dizer que a chuva é o vento e depois, ao ser questionados se ambos são iguais, afirmar que não e que só é chuva quando tem trovão.

Essa aparente confusão ocorre porque a criança ainda não é capaz de colocar os objetos em um sistema de categorias preestabelecido, no qual cada coisa tem um único significado. Quando tenta explicar o mundo à sua volta ou responder a algum questionamento, ela enfrenta obstáculos e procura diversos mecanismos para fugir deles. "Esse processo envolve um ajuste entre o que já é conhecido e as respostas que precisa dar. Para isso, todos usam os artifícios que possuem naquele estágio de desenvolvimento", explica Lilian Pessôa, coordenadora auxiliar e professora no curso de Pedagogia da Universidade Paulista (Unip) e doutoranda em Educação pela PUC-SP.

Entre as principais estratégias de resposta estão a tautologia, a elisão e a fabulação. A primeira é a repetição de uma ideia dada: "Como é o sal? É salgado". "Na impossibilidade de dar uma resposta a uma questão, o menos arriscado é repetir o primeiro termo dado pela pessoa que perguntou", diz Laurinda. A elisão significa fugir do tema e passar de um assunto a outro aparentemente diferente: "O barco boia porque tem água e é de madeira. Às vezes, a gente faz cestos de palha e sofás". Já a fabulação é a tentativa de preencher as lacunas do relato imaginando, ampliando ou inventando. Por exemplo, uma criança, ao ser questionada de onde veio, diz que saiu do repolho. Provavelmente ela recebeu essa informação da mãe ou de outra fonte do conhecimento. Para validar sua resposta, ela afirma que se lembra de quando estava lá e descreve o que sentia.

O aspecto lúdico das falas dos pequenos dá a elas um caráter poético, mas também pode gerar desconfiança entre os adultos - que confundem o que é dito com mentiras. Para evitar o problema, é importante perceber que a mistura entre realidade e imaginação faz parte do pensamento infantil(leia o trecho de livro na próxima página). Como diz Wallon no livro As Origens do Pensamento na Criança: "Muitas invenções sobre as quais a criança tece fantasias recebem seu tema do adulto. É, aliás, com frequência, com fábulas que ele responde às curiosidades dela. A ficção não é apenas natural da criança. Ela lhe é também proposta ou imposta".

Cheio de significados e sentidos, e repleto de conexões subjetivas, o jeito como os pequenos explicam o mundo à sua volta não deve ser tomado como verdade, mas tampouco pode ser reprimido. "Disciplinar inteiramente o pensamento, sejam quais forem os termos como isso se exprima, pode corresponder a fechar os caminhos que permitem recombinações suscetíveis de conduzir o pensamento por caminhos inéditos. É aqui que o sincretismo, que guarda a possibilidade de tudo ligar a tudo, de forma anárquica, pode levar ao novo", diz a pesquisadora Heloysa Dantas no livro A Infância da Razão.

É preciso, portanto, oferecer condições para que a criança exerça seu pensamento e sua expressão e possa evoluir. "Quanto mais repertório ela adquirir e quanto mais puder experimentar situações diversas e confrontar o que pensa com pessoas que têm bagagens culturais diferentes (sejam elas crianças, professores, pais ou outras fontes com as quais tenha contato), mais chances há de caminhar para a diferenciação", diz Laurinda (leia a questão de concurso na última página). A professora lembra que é na solução dos confrontos que a inteligência evolui.


Ler Wallon exige esforço, mas vale a pena

Henri
Wallon. Foto: Studio Harcourt. Pesquisa iconográfica Josiane Laurentino
HENRI WALLON No fim do século 19 e no início do 20, o pesquisador francês se empenhou em analisar o desenvolvimento infantil e entender os­ caminhos da inteligência na criança
Wallon não é um autor de fácil leitura. Contemporâneo de Jean Piaget (1896-1980) e Lev Vygotsky (1896-1934), ele escreveu oito livros nos quais se dedicou a estudar o desenvolvimento infantil, tendo uma relação estreita com as teorias da Educação. "Sua obra agrupa questões tratadas de maneira isolada pelos outros dois pensadores. Ele não estuda os elementos do desenvolvimento separadamente, mas a criança completa, em todas as suas dimensões", diz Silvia Rodrigues, professora assistente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

A complexidade dos textos, no entanto, não pode ser um impeditivo para a leitura. A obra do pesquisador oferece diversos elementos para conhecer e entender o funcionamento mental infantil e com isso ajudar a criança na superação dos obstáculos que ela enfrenta em seu processo de desenvolvimento dentro da escola. Cabe ao educador contribuir para que os pequenos caminhem rumo à categorização do pensamento sem inibir sua imaginação. Como diz o pedagogo e psicólogo francês René Zazzo no prefácio do livro Para Conhecer Wallon: Uma Psicologia Dialética, de Pedro da Silva Dantas: "Somos forçados a ultrapassar nossa razão clássica e a romper com nossa inteligência linear para compreender Wallon e, graças a ele, melhor compreender as crianças".

Na próxima reportagem da série, você vai conhecer outro importante foco de estudo do pesquisador: a afetividade - que impacta diretamente o pensamento infantil. Ela é, juntamente com a inteligência e a motricidade, uma das dimensões da criança que atuam de forma integrada no processo de construção do conhecimento. Wallon explica que os pequenos trazem para suas falas uma combinação de tudo o que receberam de informação (pelo meio ou por experiências pessoais) e que os afetou de alguma forma.

fonte: http://revistaescola.abril.com.br/gestao-escolar/henri-wallon-conceito-sincretismo-643155.shtml?page=0


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